11/22/2016

Erich Fromm sobre 1984, de George Orwell (1961)

Erich Fromm
1984, de George Orwell, é a expressão de um sentimento, e é uma advertência. O sentimento que expressa é de quase desespero acerca do futuro do homem, e a advertência é que, a menos que o curso da história se altere, os homens do mundo inteiro perderão suas qualidades mais humanas. Tornar-se-ão autômatos sem alma, e nem sequer terão consciência disso.
            O sentimento de desesperança no futuro do homem contrasta marcadamente com uma das características mais fundamentais do pensamento ocidental: a fé no progresso humano e na capacidade do homem de criar um mundo de justiça e paz. Essa esperança tem suas raízes tanto no pensamento grego como no romano, assim como no conceito messiânico dos profetas do velho testamento. A filosofia da história presente no velho testamento parte do princípio de que o homem cresce e se revela no curso da história, tornando-se finalmente o que é em potencial. Ela pressupõe que o homem desenvolve seu potencial para a razão e para o amor de forma plena, tornando-se assim equipado para compreender o mundo, sendo uno com a natureza e seus semelhantes e preservando ao mesmo tempo sua individualidade e sua integridade. A paz universal e a justiça são as finalidades do homem, e os profetas tem fé em que, apesar de todos os erros e pecados, esse “fim dos tempos” chegará, simbolizado pela figura do Messias.
Essa noção profética era um conceito histórico, um estado de perfeição a ser alcançado pelo homem no tempo histórico. A cristandade o transformou num conceito trans-histórico, puramente espiritual, embora não tenha abandonado a ideia da conexão entre as normas morais e a política. Os pensadores cristãos do fim da idade média enfatizaram que, apesar de o “Reino de Deus” não pertencer ao tempo histórico, a ordem social deveria compreender os princípios da cristandade e a eles corresponder. As seitas cristãs anteriores e posteriores à reforma enfatizaram essas demandas de maneiras mais urgentes, mais ativas e revolucionárias. Com o colapso do mundo medieval, a percepção da força e da esperança do homem não apenas na perfeição individual, mas também na social, ganhou novo alento e tomou novos rumos.
Um dos mais importantes foi a nova forma de escrever que se desenvolveu durante o renascimento, cuja primeira manifestação foi a Utopia (literalmente: “não-lugar”) de Thomas More, denominação que passou a ser aplicada a outros trabalhos similares em geral. A Utopia de Thomas More combinou uma crítica penetrante da própria sociedade do autor, de sua irracionalidade e de sua injustiça, com o retrato de uma sociedade que, apesar de não ter alcançado talvez a perfeição, resolvera a maior parte dos problemas humanos que pareciam sem solução para seus contemporâneos. O que caracteriza a Utopia de Thomas More e de todas as outras é que elas não discutem princípios em termos gerais, mas descrevem de forma imaginativa os detalhes concretos de uma sociedade que corresponde aos desejos mais profundos do homem. Contrastando com o pensamento profético, essas sociedades perfeitas não estão localizadas no “fim dos tempos”, mas já existem – elas são distantes geograficamente, e não no tempo.
À Utopia de Thomas More sucederam-se duas outras, A cidade do sol, do frei italiano Campanella, e Cristianópolis, do humanista alemão Andreae, sendo esta última a mais moderna das três. Existem diferenças de ponto de vistas e de originalidade nessa trilogia de utopias, ainda que as diferenças sejam de pouca importância se comparadas com o que elas têm em comum. Utopias foram escritas desde então por séculos a fio, até o inicio do século xx. A mais recente e mais influente delas foi Daqui a cem anos: Revendo o futuro (Looking Backward), publicada em 1888. À parte A cabana do pai Tomás e Bem Hur, foi sem dúvida o livro mais popular da virada do século, com tiragem de muitos milhões de cópias nos Estados unidos e traduzido para mais de vinte línguas.[1] A Utopia de Bellamy é parte da grande tradição americana tal como expressa pelo pensamento Whitman, Thoreau e Emerson. É a versão americana das ideias que, na época, tiveram sua expressão mais vigorosa no movimento socialista europeu.
A esperança na perfeição individual e social do homem, claramente colocada em termos filosóficos e antropológicos nos escritos de filósofos iluministas do século XVIII e nas obras dos pensadores socialistas do século XIX, permaneceu inalterada até o período pós-primeira guerra mundial. Essa guerra, na qual milhões morreram pelas ambições territoriais das potências europeias, ainda que sob a ilusão de estarem lutando pela paz e pela democracia, foi o início do desenvolvimento que levou, num tempo relativamente curto, à destruição da tradição ocidental de esperança, que contava dois mil anos de idade, e a sua transformação num sentimento de desespero. A insensibilidade moral da primeira guerra mundial foi apenas o começo. Outros eventos se seguiram: a traição das esperanças socialistas pelo capitalismo estatal de Stalin; a grave crise econômica do fim da década de 1920; a vitória da barbárie em um dos mais antigos centros culturais do mundo – a Alemanha, a insanidade do terror stalinista durante a década de 1930; a segunda guerra mundial, na qual todas as nações em conflito perderam algumas das considerações morais que ainda existiam na primeira guerra mundial; a destruição ilimitada de populações civis, iniciada por Hitler e que teve sequência na destruição ainda mais total de cidades como Hamburgo, Dresden e Tóquio, e, por fim, na utilização de bombas atômicas contra o Japão. Desde então a raça humana foi defrontada com uma ameaça ainda maior: a destruição de nossa civilização, senão de toda humanidade, por armas termonucleares tais como existem atualmente e tal como são desenvolvidas em proporções crescentes e assustadoras.
A maioria das pessoas, no entanto, não está a par dessa ameaça e de sua própria desesperança. Alguns acreditam que, só porque os armamentos modernos são tão destrutivos, a guerra é impossível; outros declaram que, mesmo 60 ou 70 milhões de americanos fossem assassinados no primeiro ou no segundo dia de uma guerra nuclear, não haveria motivos para crer que a vida não seguiria como antes, depois que o primeiro choque fosse superado. O livro de Orwell é importante precisamente porque exprimiu o novo sentimento de desesperança que impregna nossa era antes que este se manifestasse e dominasse a consciência das pessoas.
Orwell não está só nesse esforço. Dois outros escritores, o russo Zamyatin em seu livro Nós, e Aldous Huxley em seu Admirável mundo novo, exprimiram o sentimento do presente e uma advertência para o futuro de maneiras muito similares à de Orwell. Essa trilogia do que pode ser chamado de “utopias negativas” de meados do século XX é o contraponto à trilogia das utopias positivas mencionadas anteriormente, escritas no século XVI e XVII.[2] As utopias negativas expressam o sentimento de impotência e de desesperança do homem moderno assim como as utopias antigas expressavam o sentimento de autoconfiança e esperança do homem pós-medieval. Não poderia haver nada mais paradoxal em termos históricos do que essa mudança: o homem, no início da era industrial, quando na realidade não possuía os recursos para um mundo no qual a mesa estaria posta para todos os que desejassem comer, quando vivia num mundo no qual existiam razões econômicas para a escravidão, para a guerra e para a exploração, e no qual o homem apenas intuía as possibilidades de sua nova ciência e de sua aplicação técnica e à produção – ainda assim, o homem no início do progresso moderno era repleto de esperança. Quatrocentos anos mais tarde, quando todas essas esperanças são realizáveis, quando o homem pode produzir o suficiente para todos, quando a guerra se tornou desnecessária porque o desenvolvimento técnico pode dar a qualquer país mais riquezas do que as conquistas territoriais, quando este planeta está em processo de se tornar tão uno quanto era um continente quatrocentos anos atrás, no momento exato em que o homem está prestes a concretizar sua esperança, ele começa a perdê-la. É questão essencial para as três utopias negativas não apenas descrever o futuro rumo ao qual no movemos como também explicar o paradoxo histórico.
As três utopias negativas diferenciam-se entre si em detalhamentos e ênfase. Nós, escrito na década de 1920, tem mais características em comum com 1984 que Admirável mundo novo. Nós e 1984 descrevem a sociedade completamente burocratizada na qual o homem é um número, desprovido de toda noção de individualidade. Isso é ocasionado por uma mistura de terror ilimitado (no livro de Zamyatin uma cirurgia cerebral é adicionada, de forma que o homem se transforma até fisicamente) e manipulação ideológica. Na obra de Huxley, a principal ferramenta para transformar o homem num autômato é a utilização de sugestões hipnóticas em massa, o que permite prescindir do terror. Pode-se dizer que os exemplos de Zamyatin e Orwell lembram mais as ditaduras nazistas e stalinistas, enquanto o Admirável mundo novo de Huxley é um retrato do progresso do mundo ocidental industrial, posto que ele acompanha a tendência do presente sem mudar sua essência.
Apesar dessa diferença, há uma questão básica em comum entre as utopias negativas. A questão é filosófica, antropológica e psicológica, e talvez religiosa. É a seguinte: pode a natureza humana ser modificada de tal maneira que o homem esquecesse seu desejo de liberdade, dignidade, integridade, amor – ou seja, pode o homem esquecer que é humano? Ou tem a natureza humana uma dinâmica que reagiria à violação dessas necessidades humanas básicas com a tentativa de transformar uma sociedade inumana numa sociedade humana? Deve-se notar que os três autores não tomam partido do relativismo psicológico hoje comum a tantos cientistas sociais; eles não partem da ideia de que não existe algo como “natureza humana”; de que as qualidades essenciais ao homem não existem; e de que o homem, ao nascer, é apenas uma página em branco na qual uma sociedade qualquer escreve seu texto. Eles pressupõem que o homem se empenha intensamente na luta pelo amor, pela justiça, pela verdade, pela solidariedade, e, nesse aspecto, são muito diferentes dos relativistas. De fato, eles afirmam a luta e a intensidade dessas lutas humanas ao descrever os próprios meios que apresentam como necessários à sua destruição. Em Nós, é necessário realizar uma cirurgia cerebral similar à lobotomia para eliminar as demandas humanas da natureza humana. No Admirável mundo novo, a seleção biológica artificial e as drogas são necessárias, e em 1984 é a utilização completamente sem limites de tortura e lavagem cerebral. Nenhum dos três autores pode ser acusado de pensar que a destruição da humanidade dentro do homem é fácil. Todavia, os três chegam à mesma conclusão: que essa destruição é possível, com os meios e técnicas que atualmente são de conhecimento comum.
Apesar das muitas similaridades com o livro de Zamyatin, o 1984 de Orwell dá sua própria contribuição original à questão “como pode a natureza humana ser modificada?”. Tenciono falar agora sobre alguns conceitos mais especificamente orwellianos.
A contribuição de Orwell mais imediatamente relevante para o ano de 1961 e para cinco a quinze anos seguintes é a conexão que ele faz entre a sociedade ditatorial de 1984 e a guerra atômica. Guerras atômicas surgiram pela primeira vez na década de 1940; uma guerra atômica em larga escala eclodiu aproximadamente dez anos depois, e centenas de bombas foram arremessadas nos centros industriais da Rússia europeia, da Europa ocidental e da América do Norte. Depois dessa guerra, os governos de todos os países convenceram-se de que a continuidade da guerra significaria o fim da sociedade organizada e, consequentemente, de seu próprio poder. Por essas razões, mais nenhuma bomba foi arremessada e os três grandes blocos de poder existentes “simplesmente continuaram a produzir bombas atômicas e a armazená-las para o momento da oportunidade decisiva que, acreditavam, viria mais cedo ou mais tarde”. Resta ao partido dominante descobrir como “matar centenas de milhões de pessoas em poucos segundos sem aviso prévio”. Orwell escreveu 1984 antes da descoberta das armas termonucleares, e é apenas uma nota de rodapé da história afirmar que a meta mencionada já havia sido alcançada nos anos 1950. A bomba atômica lançada sobre as cidades japonesas parece pequena e ineficaz quando comparada à chacina em massa que pode ser obtida com a utilização de armas termonucleares capazes de varrer do mapa noventa ou cem por cento da população de um país em minutos.
A importância do conceito de Orwell sobre a guerra reside em diversas observações muito perspicazes.
Em primeiro lugar, ele demonstra o significado econômico da produção contínua de armamentos, sem a qual o sistema econômico não pode funcionar. Além disso, fornece um retrato impressionante de como deve se desenvolver uma sociedade que se prepara constantemente para a guerra, que o tempo todo tem medo de ser atacada e se prepara para descobrir os meios de aniquilar completamente seus oponentes. O retrato de Orwell é pertinente porque oferece um argumento vigoroso contra a noção popular de que é possível salvar a liberdade e a democracia dando continuidade à corrida armamentista e encontrando um impedimento “estável”. Esse retrato reconfortante ignora o fato de que, com o “progresso” técnico crescente (que cria armas inteiramente novas a cada cinco anos aproximadamente, e que em breve permitirá o desenvolvimento de bombas de cem ou mil megatons em lugar de dez), toda a sociedade será forçada a viver em subterrâneos, mesmo que o poder destruidor de bombas termonucleares seja mais profundo que as cavernas, que o militarismo se torne dominante (de fato, senão pela lei), que o medo e o ódio de um possível agressor destruam as atitudes básicas de uma sociedade democrática e humanista. Em outras palavras, a corrida armamentista contínua, mesmo que não levasse à eclosão de uma guerra termonuclear, levaria à destruição de todas as qualidades de nossa sociedade que pudessem ser chamadas de “democráticas”, “livres” ou “pertencentes à tradição americana”. Orwell demonstra a ilusão que é pressupor que a democracia pode continuar existindo num mundo que se prepara para a guerra nuclear, e o faz de maneira imaginativa e brilhante.
Outro aspecto importante é a descrição que Orwell faz da natureza da verdade, que na superfície é um retrato do tratamento que Stalin dispensa à verdade, especialmente nos anos 1930. Mas todo aquele que enxergar na descrição de Orwell apenas outra denúncia do stalinismo estará confundindo um elemento essencial da análise de Orwell. Na verdade, ele fala sobre um progresso que também está acontecendo nos países industriais do ocidente, apenas num ritmo mais lento que na Rússia e na china. A questão básica levantada por Orwell é se há algo que se possa denominar “verdade”. “A realidade” diz o partido dominante, “não é externa. A realidade existe na mente humana e em nenhum outro lugar (...) tudo o que o partido reconhece como verdade é a verdade”. Se isso é fato, ao controlar a mente dos homens o partido controla a verdade. Num diálogo dramático entre o protagonista do partido e o rebelde vencido, uma analogia digna do diálogo de Dostoiévski entre o inquisidor e Jesus, os princípios básicos do partido são explicados. Ao contrário do inquisidor, entretanto, os líderes do partido nem sequer fingem que seu sistema tem o intuito de tornar o homem mais feliz, porque os homens, sendo criaturas frágeis e covardes, querem escapar da liberdade e são incapazes de encarar a verdade. Os líderes são conscientes do fato de que eles próprios têm apenas uma meta, que é o poder. Para eles, “o poder não é um meio; é um fim. E poder significa capacidade de infligir dor e sofrimento ilimitados a outro ser humano”.[3] Consequentemente, o poder, para eles, cria a realidade, cria a verdade. A posição que Orwell atribui aqui à elite do poder pode ser vista como uma forma extrema de idealismo filosófico, mas é mais relevante reconhecer que os conceitos de verdade e realidades presentes em 1984 são uma forma extrema de pragmatismo na qual a verdade passa a subordinar-se ao partido. Um escritor americano, Alan Harrington, que em Life in the Crystal Palace (A vida no palácio de cristal) [4] oferece um retrato penetrante e sutil da vida numa grande corporação americana, cunhou uma excelente expressão para o conceito contemporâneo da verdade: “verdade móvel”. Se trabalho para uma grande corporação que afirma que seu produto é melhor que o dos concorrentes, questionar se essa afirmação é justificada ou não no âmbito da realidade discernível torna-se irrelevante. O que importa é que, enquanto sirvo a essa corporação em particular, tal afirmação passa a ser a “minha” verdade e abro mão de questionar se ela é uma verdade objetivamente válida. De fato, se mudo de emprego e me transfiro para a corporação que era até agora “minha” concorrente, devo aceitar a nova verdade – de que seu produto é melhor – e, subjetivamente falando, essa verdade será tão verdadeira quanto a anterior. Um dos desenvolvimentos mais característicos e destrutivos de nossa sociedade é o fato de que o homem, ao se tornar cada vez mais um instrumento, transforma a realidade, progressivamente, em algo relacionado a seus próprios interesses e funções. A verdade é provada pelo consenso de milhões; ao slogan “como é possível que milhões estejam errados” é adicionado “e como pode estar certa a minoria de um só”. Orwell demonstra muito claramente que num sistema no qual o conceito de verdade como julgamento objetivo acerca da realidade é abolido, todo aquele que construir uma minoria de um só deve ser convencido de que é insano.
Descrevendo o tipo de pensamento dominante em 1984, Orwell cunhou um termo que já se tornou parte do vocabulário moderno: “duplipensamento”. “Duplipensamento significa a capacidade de abrigar simultaneamente na cabeça duas crenças contraditórias, e acreditar em ambas (...) esse processo precisa ser consciente, ou não seria conduzido com a necessária precisão, mas também precisa ser inconsciente, do contrário traria consigo um sentimento de falsidade e, portanto, de culpa.” É precisamente o aspecto inconsciente do duplipensamento que irá induzir muitos leitores de 1984 a acreditar que o método de duplipensamento é empregado pelos russos e pelos chineses, embora seja algo totalmente estranho a eles. Isso, no entanto, é uma ilusão, como alguns exemplos podem demonstrar. Nós, do ocidente, falamos em “mundo livre”, e nele incluímos não apenas sistemas como o dos Estados Unidos e Inglaterra, baseados em eleições livres e liberdade de expressão, como também ditaduras sul-americanas (pelo menos as incluímos enquanto existiram) e várias formas de ditadura, como as de Franco e Salazar, e as da África do Sul, Paquistão e Etiópia. Quando falamos em mundo livre, referimo-nos a todos os estados que se posicionam contra a Rússia e a China, e de forma alguma, como as palavras podem dar a entender, a estados que tenham liberdade política. Outro exemplo contemporâneo da sustentação e aceitação simultânea de duas crenças contraditórias pode ser encontrado em nossa discussão sobre armamentos. Gastamos parte considerável de nossa renda e energia na construção de armas termonucleares, e fechamos nossa mente para o fato de que elas podem ser acionadas, destruindo um terço ou metade de nossa população (e da população do inimigo). Algumas podem ir ainda mais longe; de modo que Herman Kahn, um dos mais influentes escritores da estratégia atômica hoje em dia, declara: “...em outras palavras, a guerra é horrível, não há dúvida quanto a isso, mas também a paz é horrível, e é próprio do tipo de cálculo que fazemos atualmente comparar o horror da guerra ao horror da paz, e ver o quanto aquele é pior”.[5]
Kahn presume que a guerra termonuclear possa significar a destruição de 60 milhões de americanos, e ainda assim considera que, mesmo em tal caso, “o país se recuperaria rápida e efetivamente” (ib., p. 74) e que “vidas normais e felizes para a maioria dos sobreviventes e seus descendentes” (ib., p. 21) não seriam eliminados pela tragédia da guerra termonuclear. Essa visão considera que: a) nos preparamos para a guerra de modo a preservar a paz; b) caso a guerra ecloda e os russos matem um terço de nossa população, e caso lhe façamos o mesmo (e mais, claro, se pudermos), mesmo assim as pessoas viverão alegres depois; c) não apenas a guerra, mas também a paz é horrível, e é necessário examinar o quanto a guerra é mais horrível que a paz. Pessoas que aceitam esse tipo de raciocínio são chamadas de “sóbrias”; aquelas que duvidam que a morte de 2 ou 6 milhões de pessoas deixaria a América essencialmente intata não são “sóbrias”, aqueles que apontam para as consequências morais, políticas e psicológicas de tal destruição são chamadas de “não realistas”.
Ainda que este não seja o lugar para uma discussão extensa do problema do desarmamento, esse exemplos deve ser oferecidos para que se chegue a um ponto essencial para a compreensão do livro de Orwell, isto é, que o “duplipensamento” já está conosco e não é meramente algo que acontecerá no futuro, em ditaduras.
Outra questão importante na discussão de Orwell está intimamente relacionada ao “duplipensamento”, a saber, que em uma manipulação bem-sucedida da mente, a pessoa não mais está dizendo o oposto do que pensa, mas pensa o oposto do que é verdadeiro. Assim, por exemplo, se ela desiste completamente de sua independência e de sua integridade, se passa a ver-se como algo pertencente ao estado, ao partido ou à corporação, então dois e dois são cinco, ou “Escravidão é liberdade”, e ela se sente livre porque não tem mais consciência da discrepância entre verdade e falsidade. Isso se aplica especificamente às ideologias. Assim como os inquisidores que torturavam seus prisioneiros acreditavam agir em nome do amor cristão, o partido “rejeita e avilta cada um dos princípios originalmente defendidos pelo movimento socialista, e trata de fazê-lo em nome mesmo do socialismo”. Seu conteúdo é invertido para o oposto, e ainda assim as pessoas acreditam que a ideologia significa o que diz. A esse respeito, Orwell refere-se obviamente à falsificação do socialismo pelo comunismo russo, mas deve-se acrescentar que o ocidente também é culpado de falsificação semelhante. Apresentamos nossa sociedade como uma sociedade onde se pratica a livre iniciativa, o individualismo e o idealismo, quando na realidade tais palavras não passam de palavras. Somos uma sociedade industrial-gerencial centralizada, de natureza essencialmente burocrática e motivada por um materialismo apenas levemente mitigado por preocupações verdadeiramente espirituais ou religiosas. Relacionado a isso está outro exemplo de “duplipensamento”, ou seja: poucos escritores, ao discutirem a estratégia atômica, tropeçam quando não mencionam o fato de que matar, do ponto de vista cristão, é tão ou mais maléfico do que ser morto. O leitor encontrará várias outras características de nossa sociedade ocidental contemporânea na descrição de Orwell em 1984, contanto que consiga subjugar seu próprio “duplipensamento”.
Não há dúvida de que o retrato de Orwell é excessivamente desanimador, em especial se reconhecemos que, como o próprio Orwell indica, não se trata apenas do retrato de um inimigo, mas de toda a raça humana no final do século XX. É Possível reagir a esse retrato de dois modos: tornando-se mais desesperançado e resignado, ou sentindo que ainda há tempo e reagindo com maior clareza e mais coragem. Todas as três utopias negativas dão a entender que é possível desumanizar o homem por completo e ainda assim a vida continuar. Podemos duvidar da exatidão desse pressuposto e pensar que, na eventualidade de que o cerne humano do homem fosse destruído, também o futuro da humanidade estaria sendo destruído. Tais homens seriam tão verdadeiramente inumanos e desprovidos de vitalidade que haveriam de destruir-se uns aos outros, ou morreriam de puro tédio e ansiedade. Se o mundo de 1984 vier a tornar-se a forma dominante de vida neste planeta, isso quer dizer um mundo de loucos, e portanto um mundo inviável (Orwell indica muito sutilmente ao apontar para o brilho demente nos olhos do líder do partido). Estou certo de que nem Orwell, nem Huxley, nem Zamyatin gostariam de asseverar que esse mundo de insanidade está destinado a se realizar. Pelo contrário, é bastante óbvio que a intenção deles é fazer soar um alarme, ao mostrar para onde estamos indo, caso não tenhamos sucesso na promoção do renascimento do espírito de humanidade e dignidade que está nas próprias raízes da cultura ocidental. Assim como os outros dois autores, Orwell simplesmente sugere que a nova forma de industrialismo gerencial, na qual o homem constrói máquinas que agem como homens e desenvolve homens que agem como máquinas, conduz a uma era de desumanização e completa alienação, na qual homens são transformados em coisas e se tornam apêndices do processo de produção e consumo.[6] Os três autores sugerem que esse perigo existe não apenas nas versões russa e chinesa do comunismo, mas que é inerente ao modo moderno de produção e organização e é relativamente independente das várias ideologias. Orwell, como os autores das outras utopias negativas, não é um profeta do desastre. Ele deseja nos alertar e nos acordar. Ainda tem esperança – mas ao contrário dos escritores das utopias das fases iniciais da sociedade ocidental, a sua é uma esperança desesperada. A esperança só pode concretizar-se, nos ensina 1984, se percebemos o perigo que confronta os homens hoje, o perigo de uma sociedade de autômatos que terão perdido todos os traços de individualidade, amor e pensamento crítico, e que não serão capazes de percebê-lo em decorrência do “duplipensamento”. Livros como o de Orwell são advertências poderosas, e seria lamentável se o leitor, de modo autocomplacente, interpretasse 1984 como mais uma descrição da barbárie stalinista, sem perceber que o livro também se refere a nós.


[1] A edição mais recente foi publicada pela New American Library of World Literature, Inc., Nova York, 1960 (CD26).
[2] Deve-se acrescentar que O tacão de ferro, de Jack London, que prediz o fascismo na América, foi a primeira das modernas utopias negativas.
[3] Cf. esta definição de poder em Erich Fromm, Escape from Freedom. Nova York: Rinehart & Co., Inc., 1941. E também a definição de Simone Weil de que o poder é a capacidade de transformar uma pessoa viva num cadáver, ou seja, numa coisa.
[4] Alan Harrington,  Life in the Crystal Palace. Nova York: Alfred A. Knopf Inc., 1959; Londres: Jonathan Cape, Ltd., 1960.
[5] Cf. H. Kahn, On Thermonuclear War. Princeton: Princeton University Press, 1960, p. 47, n. 1.
[6] Este problema é analisado em detalhes em Eric Fromm, The Sane Society. Nova York: Rinehart & Co., Inc., 1995.

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